Olhares que Adoecem, Olhares que Curam: Uma Reflexão sobre a Infância Inspirada em Pikler e Fröbel
Quantas vezes nossos próprios filtros e experiências passadas nos levam a interpretar o comportamento infantil de maneiras que, ao invés de compreender, aprisionam e até mesmo "adoecem" a criança? Essa reflexão se tornou vívida durante uma observação em uma escola infantil com uma rica base pedagógica em Emmi Pikler e Friedrich Fröbel.
Imagine a cena: crianças entre 4 e 6 anos, reunidas em um círculo mágico de histórias e canções. A energia vibrante da infância preenchia o ar enquanto a música da borboleta ecoava. No entanto, um pequeno indivíduo permanecia à margem, observando de longe. Para uma estagiária, imersa em pressupostos de abordagens mais tradicionais, talvez influenciada por olhares que buscam "problemas" a serem diagnosticados, essa criança poderia parecer "não adaptada", talvez com alguma dificuldade de integração.
A observação continuou. A proposta da escola, firmemente ancorada na autonomia infantil, permitiu que essa criança trilhasse seu próprio caminho. Em um momento, ela se ausentou para ir ao banheiro sozinha, um ato de independência que, sob outra lente, poderia passar despercebido. Ao retornar, manteve-se observando o grupo, no seu tempo, sem pressa.
O ponto crucial da observação ocorreu quando, ao final da segunda atividade, a professora se aproximou com gentileza e convidou a criança a se sentar ao seu lado. A aceitação foi natural, sem hesitação. Contudo, a criança permaneceu quieta, absorta, levando o dedo à boca em alguns instantes. Para a estagiária, esse gesto poderia evocar interpretações de "regressão", talvez associado a alguma experiência traumática, um olhar que projeta no comportamento infantil significados adultos e, muitas vezes, patologizantes.
Mas a beleza da pedagogia Pikler-Fröbel reside justamente em oferecer um "olhar que cura", um olhar que respeita o tempo, a individualidade e a capacidade intrínseca da criança de se desenvolver em seu próprio ritmo. Ao aprofundar o estudo sobre esses pedagogos, a estagiária pôde ressignificar a cena. A criança que estava fora do círculo não era "desadaptada", mas sim uma exploradora no seu tempo, talvez precisando de um momento para observar e se sentir segura antes de se integrar completamente
A autonomia demonstrada ao ir ao banheiro sozinha reflete a confiança da escola na capacidade da criança de atender às suas próprias necessidades
Essa experiência nos leva a refletir sobre a dicotomia entre "olhares que adoecem" e "olhares que curam". Abordagens psicológicas excessivamente projetivas, como certas vertentes da psicanálise, podem, por vezes, interpretar comportamentos infantis normais dentro de um espectro patológico, buscando traumas ou regressões onde talvez haja apenas a manifestação da individualidade e do tempo próprio de cada criança
Por outro lado, a pedagogia de Emmi Pikler e Friedrich Fröbel encontra forte ressonância na psicologia do desenvolvimento. Essa área da psicologia enfatiza a importância de observar a criança em seu contexto, compreendendo as fases do desenvolvimento, respeitando os ritmos individuais e valorizando a autonomia e a capacidade de auto-regulação
Pikler, com sua ênfase na liberdade de movimento e no desenvolvimento autônomo, e Fröbel, com seu foco no brincar livre e na importância do ambiente, compartilham com a psicologia do desenvolvimento a visão de que a criança é um ser ativo, competente e capaz de aprender e se adaptar ao seu próprio tempo, desde que lhe sejam oferecidas as condições adequadas de respeito e segurança
A experiência da estagiária nos lembra da importância de questionar nossos próprios pressupostos e de buscar referenciais teóricos que nos permitam um olhar mais generoso e compreensivo sobre a infância. Um olhar que não busca patologizar cada comportamento, mas que confia na sabedoria intrínseca da criança e em seu potencial para florescer em seu próprio tempo, sem a necessidade de intervenções adultas excessivas ou interpretações apressadas. Afinal, o verdadeiro "cuidado" na educação infantil reside em oferecer um ambiente que nutre a autonomia e respeita o ritmo de cada pequeno ser, permitindo que se desenvolvam de forma plena e saudável.
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