Uma história tocante sobre trauma, descanso e o poder de um olhar que cura.
“Os ratos dormem à noite”: uma metáfora para as lealdades invisíveis na alma familiar
Por Cida Medeiros
Terapeuta holística com abordagem integrativa e sistêmica
Em muitos momentos da minha caminhada como terapeuta, me deparo com histórias que tocam camadas muito profundas da alma. Uma delas, ouvida em um seminário com Bert Hellinger, ficou gravada em minha memória e continua ecoando em meu coração há décadas. Ela revela com simplicidade e força como olhares — de dor, de lealdade, de trauma — podem aprisionar vidas inteiras em destinos que não lhes pertencem.
A história é a seguinte:
Um menino em Berlim, exausto, vigiava o corpo do irmão morto para que os ratos não o devorassem. Um homem amigável, ao vê-lo, sussurrou: “Mas os ratos dormem à noite”. Somente então, a criança pôde descansar.
À primeira vista, parece apenas um gesto de ternura. Mas quando olhamos por uma lente sistêmica, essa imagem se transforma em um espelho poderoso.
Lealdades Invisíveis: o menino e seu irmão
Na Constelação Familiar, falamos sobre lealdades inconscientes que nos ligam ao sistema familiar. Muitas vezes, tomamos para nós dores que não são nossas, por amor cego, tentando manter vivos vínculos com quem já partiu ou sofreu. É como se disséssemos, em silêncio: “Eu cuido disso por você. Eu carrego isso no seu lugar.”
Esse menino, ao velar o irmão morto, talvez represente tantas pessoas que, dentro das famílias, se mantêm em vigilância perpétua, emocionalmente presas ao sofrimento, à perda, ao medo. Quantos de nós seguimos acordados — mesmo que simbolicamente — vigiando dores que não são mais necessárias?
O olhar que cura: a frase que liberta
A frase dita pelo homem — “Os ratos dormem à noite” — não é apenas reconfortante. Ela carrega em si o poder da permissão. Uma permissão silenciosa para soltar, para descansar, para deixar que os mortos sigam seu caminho e que os vivos retomem o fluxo da vida.
Esse olhar externo, amoroso e consciente, chega como um novo campo de possibilidades. É um olhar que cura porque reconhece o limite, honra o passado e convida para o presente.
O papel da presença terapêutica
Na minha prática, percebo que, muitas vezes, o mais transformador não é o discurso, mas a presença. Assim como o homem da história, nós, como terapeutas ou familiares conscientes, podemos ser essa voz que suavemente convida ao descanso. Um olhar que diz: “Você não precisa mais carregar isso.”
Em muitos atendimentos, essa “frase certa” chega como uma intuição. Outras vezes, ela nasce da escuta profunda, do campo que se abre quando honramos a história que cada alma traz.
E você? Que corpo tem velado? Que dor tem vigiado? Que peso ainda sustenta por amor?
Talvez seja hora de se perguntar: de quem é esse fardo que você carrega?
E mais importante: quem dentro de você precisa ouvir que já é seguro descansar?
“Os ratos dormem à noite” pode ser muito mais do que uma frase. Pode ser um convite amoroso para que você permita ao seu sistema o descanso que ele tanto espera.
E, com isso, possa caminhar mais leve, com os olhos voltados para a vida.
Cida Medeiros
A serviço do Ser
📌 cidamedeiros.org | @Cida2016medeiros
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